A Travessia dos Universos de Haruki Murakami

O escritor e crítico de arte Benedito Costa escreve sobre o fenômeno literário japonês  que arrebatou multidões de leitores no mundo todo, misturando literatura e cultura pop,  enquadrando suas narrativas no universo fantástico, com uma dose de melancolia.

Por Benedito Costa
Murakami, a última "sensação" na literatura japonesa


Conhece Haruki Murakami?
Toda literatura versa sobre literatura: já tanta  tinta foi derramada sobre isso. Mas há autores que, digamos, tratam diretamente da literatura mais do que como simples diálogo ou como simples menção que faça apoiar a estrutura de um romance, ou como mera intertextualidade, e Haruki Murakami é um desses.
Certamente não terá sido o primeiro tampouco será o último (porque, sim, a literatura não morrerá tão cedo). Essa é a primeira característica da escrita de Murakami: uma literatura em franco diálogo, em diálogo aberto com a literatura, seja Kafka, apontado não inocentemente, a literatura tradicional japonesa, a literatura francesa, sem ordenamento, sem superioridade no grau dos diálogos.
Costumo apontar outras questões – quase obsessões – em Murakami: a intersecção de tempos (algo comum nas literaturas ocidentais modernas) e a intersecção de universos (algo extremamente incomum nas literaturas ocidentais). O gosto pela música e, em certos momentos pela arte, design, pela arquitetura. Eu diria que há também em Murakami uma obsessão pelo discurso psicanalítico, de forma paródica.

"Kafka à beira-mar", mais uma história fantástica
Murakami é também um autor copioso, que tem a capacidade de produzir obras extensas, em pouco tempo, e a capacidade de publicar bastante. No entanto, já deixa entrever algumas obras-primas, assim, no plural. Certamente, é uma ousadia para críticos ou para leigos dizer isso, mas até o momento “Norwegian Wood”, “Minha querida Sputnik” e “Kafka à beira mar” são seus trabalhos mais bem acabados, como texto, como narrativa e história, como variação possível ao romance e a seu discurso. Ao mesmo tempo, há obras que devem ser citadas. Não houvesse as outras, já seriam clássicos do mundo contemporâneo, como é o caso de “Crônica do Pássaro de Corda”, uma narrativa que, como diriam os antigos, é uma obra de fôlego.
Os universos em Murakami se interpenetram, seja o maravilhoso, o fantástico, o universo do sonho, o mítico oriental, o dos jogos eletrônicos, e aquele que podemos chamar temporariamente virtual. Ao passo que, talvez, outros autores possam realizar esta tarefa (mais para lá, mais para cá), a maestria de Murakami é bastante rara. A maneira como uma personagem invade outro universo (numa floresta, no fundo de um poço, no sonho, através de um aparelho de televisão) é extremamente natural e bem resolvida. Evidentemente, Murakami não se incomoda com a dúvida e certamente o leitor duvidará do que lê, muitas vezes tendo de voltar algumas páginas para encontrar-se. Gosto de imaginar que o diálogo que Murakami faz como mundo virtual vai além da descrição literária. Se ao lermos um texto na tela de um computador (ou tablet, ou telefone), temos de rolar a tela, muitas vezes tendo de voltar, tendo de nos desviar de propagandas, tendo de visualizar links para um entendimento, Murakami consegue efeito semelhante no ato mesmo da leitura. No meio virtual, a leitura dita “virtual” promove a possibilidade de irmos a outros sítios, através de simples caixas ou links. De certo modo, muitas de suas obras (notadamente as mais recentes) promovem exercício semelhante, durante a leitura do livro – com o perdão da palavra – físico, e não o virtual. Num momento da história em que as novas gerações estão cada vez mais longe do livro e desse modo de ler, revirando páginas físicas, o feito de Murakami não deve passar despercebido. Ele não “fala” apenas do mundo virtual: este mundo ou universo percorre suas páginas e atravessa os personagens, ao passo que seu leitor deve seguir um caminho semelhante. Transformar o hábito da leitura numa tarefa outra já demonstra o caráter superior da literatura de Murakami.
De todo modo, o humano está em primeiro lugar, sempre, e suas obras instauram-se num campo nostálgico difícil de descrever. A ironia com que trata a fé ou a falta dela, o cuidado que tem em examinar o homem contemporâneo e suas fraquezas e ingenuidade, a extrema acuidade em vasculhar os espíritos solitários das grandes cidades, a variedade de tipos de que lança mão, tudo isso também está presente em suas linhas.
Há uma tristeza pungente (se há pleonasmo aqui, ele é voluntário) nas descrições dos seres, gente comum ou acima da média, gente ambígua (uma ex-lutadora, um menino que é menina, mas que cuja identidade sexual é a homossexual masculina), na sexualidade também ambígua ou incognocível (paixões sem sexo, sem endereço, sem definição), nas descrições precisas das frias cidades contemporâneas, na descrição de gente das margens (loucos, alucinados, visionários, órfãos, solitários), na constatação dos desejos mais comuns – e por isso mais extremos – dos seres: sumir, evadir-se, procurar outro lugar.
Há uma infinidade de autores contemporâneos (aqui falo de romances) a serem lidos e estudados, mas poucos como ele: Thomas Pynchon, Peter Handke, Roberto Bolaño, todos prolíficos, tempestuosos, autores que, como dizia Vitrúvio dois mil anos faz: “nos presentearam com seu saber e seus escritos”, para nossa sorte.
Apesar de sua literatura complexa e invulgar, Murakami muito logo arrebatou uma legião de fãs. Não nos deixemos enganar.
Benedito Costa é professor de Literatura e critico de arte, autor do livro “Diante do abismo” (Benvirá, 2011).

By: Jornal Memai

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