A Travessia dos Universos de Haruki Murakami
O
escritor e crítico de arte Benedito Costa escreve sobre o fenômeno
literário japonês que arrebatou multidões de leitores no mundo todo,
misturando literatura e cultura pop, enquadrando suas narrativas no
universo fantástico, com uma dose de melancolia.
Por Benedito Costa
Conhece Haruki Murakami?
Toda literatura versa sobre literatura: já tanta tinta
foi derramada sobre isso. Mas há autores que, digamos, tratam
diretamente da literatura mais do que como simples diálogo ou como
simples menção que faça apoiar a estrutura de um romance, ou como mera
intertextualidade, e Haruki Murakami é um desses.
Certamente não terá sido o primeiro tampouco será o último
(porque, sim, a literatura não morrerá tão cedo). Essa é a primeira
característica da escrita de Murakami: uma literatura em franco
diálogo, em diálogo aberto com a literatura, seja Kafka, apontado não
inocentemente, a literatura tradicional japonesa, a literatura
francesa, sem ordenamento, sem superioridade no grau dos diálogos.
Costumo apontar outras questões – quase obsessões – em
Murakami: a intersecção de tempos (algo comum nas literaturas
ocidentais modernas) e a intersecção de universos (algo extremamente
incomum nas literaturas ocidentais). O gosto pela música e, em certos
momentos pela arte, design, pela arquitetura. Eu diria que há também em
Murakami uma obsessão pelo discurso psicanalítico, de forma paródica.
Os universos em Murakami se interpenetram, seja o
maravilhoso, o fantástico, o universo do sonho, o mítico oriental, o
dos jogos eletrônicos, e aquele que podemos chamar temporariamente
virtual. Ao passo que, talvez, outros autores possam realizar esta
tarefa (mais para lá, mais para cá), a maestria de Murakami é bastante
rara. A maneira como uma personagem invade outro universo (numa
floresta, no fundo de um poço, no sonho, através de um aparelho de
televisão) é extremamente natural e bem resolvida. Evidentemente,
Murakami não se incomoda com a dúvida e certamente o leitor duvidará do
que lê, muitas vezes tendo de voltar algumas páginas para
encontrar-se. Gosto de imaginar que o diálogo que Murakami faz como
mundo virtual vai além da descrição literária. Se ao lermos um texto na
tela de um computador (ou tablet, ou telefone), temos de rolar a tela,
muitas vezes tendo de voltar, tendo de nos desviar de propagandas, tendo
de visualizar links para um entendimento, Murakami consegue efeito
semelhante no ato mesmo da leitura. No meio virtual, a leitura dita
“virtual” promove a possibilidade de irmos a outros sítios, através de
simples caixas ou links. De certo modo, muitas de suas obras
(notadamente as mais recentes) promovem exercício semelhante, durante a
leitura do livro – com o perdão da palavra – físico, e não o virtual.
Num momento da história em que as novas gerações estão cada vez mais
longe do livro e desse modo de ler, revirando páginas físicas, o feito
de Murakami não deve passar despercebido. Ele não “fala” apenas do
mundo virtual: este mundo ou universo percorre suas páginas e atravessa
os personagens, ao passo que seu leitor deve seguir um caminho
semelhante. Transformar o hábito da leitura numa tarefa outra já
demonstra o caráter superior da literatura de Murakami.
De todo modo, o humano está em primeiro lugar, sempre, e
suas obras instauram-se num campo nostálgico difícil de descrever. A
ironia com que trata a fé ou a falta dela, o cuidado que tem em
examinar o homem contemporâneo e suas fraquezas e ingenuidade, a
extrema acuidade em vasculhar os espíritos solitários das grandes
cidades, a variedade de tipos de que lança mão, tudo isso também está
presente em suas linhas.
Há uma tristeza pungente (se há pleonasmo aqui, ele é
voluntário) nas descrições dos seres, gente comum ou acima da média,
gente ambígua (uma ex-lutadora, um menino que é menina, mas que cuja
identidade sexual é a homossexual masculina), na sexualidade também
ambígua ou incognocível (paixões sem sexo, sem endereço, sem
definição), nas descrições precisas das frias cidades contemporâneas,
na descrição de gente das margens (loucos, alucinados, visionários,
órfãos, solitários), na constatação dos desejos mais comuns – e por
isso mais extremos – dos seres: sumir, evadir-se, procurar outro lugar.
Há uma infinidade de autores contemporâneos (aqui falo de
romances) a serem lidos e estudados, mas poucos como ele: Thomas
Pynchon, Peter Handke, Roberto Bolaño, todos prolíficos, tempestuosos,
autores que, como dizia Vitrúvio dois mil anos faz: “nos presentearam
com seu saber e seus escritos”, para nossa sorte.
Apesar de sua literatura complexa e invulgar, Murakami muito logo arrebatou uma legião de fãs. Não nos deixemos enganar.
Benedito Costa é professor de Literatura e critico de arte, autor do livro “Diante do abismo” (Benvirá, 2011).
By: Jornal Memai
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