De grão em grão, arroz faz história no Japão

Presente no cotidiano do país há 3.000 anos, o cereal é capaz até de derrubar ministros
Novas variedades são usadas para fazer “arte” nas plantações 
Turistas são estimulados a participar de colheita, em esforço para frear a queda de consumo do grão
Plantio do arroz na primavera: cultivo ajuda a compor um dos principais cartões postais do Japão, o Monte Fuji
(Reportagem: Yoko Fujino | Fotos: Kyodo News)
O arroz é a base da dieta dos japoneses há mais de 3.000 anos, e mesmo com a ocidentalização dos hábitos, não há como ficar longe dele no dia a dia daquele país: da bebida alcoólica ao doce, do chá ao cosmético, das cerimônias da Casa Imperial até as festas populares da primavera e do outono, lá está o cereal.
Diz a tradição japonesa que há 88 deuses em cada grão de arroz. Mas há também quem diga que são 7 ou até 108. Independentemente do número de divindades, a crença mostra quão importante é o cereal para os japoneses.
Os primeiros vestígios de plantação no Japão datam de 2.500 anos atrás. O tanbo (planatação de arroz alagada) mais antigo está na província de Okayama. Mas há pelo menos 3.000 anos seu cultivo teria sido transmitido aos japoneses pela China.
O calendário tradicional japonês está atrelado ao arroz tanto para os nobres como para as pessoas comuns. As principais festas tradicionais ocorrem na época do plantio e da colheita, ou seja, na primavera e no outono. Muitas festividades que acontecem no verão são para pedir tempo bom e chuva para dar boa colheita. E os japoneses encerram o ano fazendo mochi, o bolinho de arroz socado, que é usado para fazer a primeira refeição do ano, e o zouni, ou sopa com mochi.
O arroz também é o centro dos rituais da família imperial: no mês de novembro subsequente à entronização do novo imperador acontece o Oonie no Matsuri, quando o novo chefe de Estado faz oferendas aos deuses e ele mesmo come o arroz. A oferenda é feita em dois espaços, e para cada um deles é escolhido grãos de diferentes partes do país, geralmente um da região oeste e outro da região leste. Após o primeiro ano, o imperador participa do Niinamesai, no dia 23 de novembro, quando oferece os cinco principais cereais aos deuses, para agradecer a safra daquele ano. Em fevereiro acontece o Kinensai, quando o imperador pede boa safra aos deuses.
Artigo de luxo
Por um longo tempo, o arroz branco foi artigo de luxo para os japoneses. Seu plantio exige terra rica em nutrientes e, em regiões montanhosas ou muito frias, as pessoas comuns comiam outros cereais, como soba (trigo sarraceno), hie (um tipo de grão) e awa (painço). O arroz era comida de dia de festa. Era também comum misturar o arroz a outros alimentos, como nabo – o daikonmeshi, que ficou famoso com Oshin, novela levada ao ar pela NHK em 1983.
Depois de alguns anos de estabilidade, o preço do arroz disparou em meados de 1918: de acordo com registros do mercado de Dojima, Osaka, em janeiro de 1918, 1 koku (180,39 litros ou aproximadamente 150 quilos) de arroz custava 15 ienes (R$ 0,31). Em junho do mesmo ano a mesma quantidade era vendida por 20 ienes (R$ 0,62), e em julho já chegava a 30 ienes (R$ 0,93), mais do que a renda média mensal dos japoneses de então. A disparada no preço estaria relacionada ao aumento do consumo do arroz e à redução da importação do grão, por influência da Primeira Guerra Mundial. A alta do preço desencadeou uma onda de protestos que chegou a 369 localidades de 41 províncias.
Em 22 de julho de 1918, algumas dezenas de mulheres impediram o carregamento de arroz no navio Ibuki-maru, no porto de Uozu, Toyama, que seria levado a Hokkaido. As mulheres, que pediam que o arroz fosse vendido à população local, foram dispersadas pela polícia, mas, no dia 3 de agosto, cerca de 200 pessoas fizeram manifestação na atual cidade de Toyama pedindo a distribuidores de arroz que não mandassem o cereal a outras localidades e vendessem à população local. Três dias depois já eram mais de 1.000 pessoas protestando, o que obrigou a venda do arroz por 0,35 iene (R$ 0,01) por 1 shou (aproximadamente 1,5 quilo), quando o preço médio era de 0,40 a 0,50.
O incidente acabou levando o então primeiro-ministro Masatake Terauchi a renunciar. Takashi Hara tornou-se o primeiro político plebeu a ocupar o posto no Japão, em setembro de 1918. Hara, chamado de “premiê plebeu”, foi bem recebido pelo povo.
Redução de plantio
O desenvolvimento de novas técnicas e variedades mais resistentes aumentou a produtividade do arroz, e hoje é possível suprir o mercado japonês com somente 60% da área disponível para plantio.
De acordo com um estudo realizado por Kazuhito Yamashita, pesquisador da Rieti, 40% das calorias ingeridas pelos japoneses, em 2000, eram provenientes do arroz – em 1969 este número chegava a 79%. Em 1962, cada japonês consumia em média 118,3 quilos de arroz por ano, mas em 2006 eram ingeridos 61 quilos por ano, em média, incluindo arroz in natura, mochi e doces. Arroz usado para fazer saquê, temperos e similares não estão inclusos nesta conta. Calcula-se que em 2008 o consumo anual per capita de arroz chegou a 55 quilos.
O aumento da produtividade fez que o estoque do cereal ficasse muito acima do consumo e o governo, que antigamente estimulava plantações do grão, passou a proibir o aumento do plantio em 1970, para evitar a queda excessiva de seu preço. Como forma de compensar o produtor, o Japão dá subsídios ao produtor que usar o terreno da plantação para produzir outros alimentos. Kazuyasu Yokoyama, produtor de arroz de Hokkaido que morou no Brasil entre 1989 e 1990, também participa do “remanejamento” da produção de arroz, popularmente chamado gentan, pela redução de área de plantio. “Vendo o consumo de arroz por japoneses cair tanto, acho inevitável o remanejamento da produção”, diz Yoko-yama, que planta hoje quatro hectares do cereal. A medida varia de província para província, e em Hokkaido a área a ser reduzida varia conforme um ranking: “Na minha província, o tamanho da área é calculado para cada cidade ou vila, de acordo com o volume da colheita, a qualidade do produto e estabilidade do volume colhido, dividindo em cinco notas. Para quem tem nota máxima 5, a área a ser ajustada é menor, e o que ultrapassa a média é repassado para quem tem nota 1. Dessa forma, os produtores competem entre si. Não existe obrigatoriedade de aderir ao ajuste, mas como há subsídios, os produtores acabam aderindo”, explica Yokoyama.
Como forma de aumentar o consumo de arroz e reduzir o estoque do cereal, o governo japonês vem incentivando o uso de farinha feita com arroz. A farinha de arroz, há muito tempo, é usada na culinária tradicional japonesa em doces como dango, uirou, sakuramochi e gyuhi, mas o governo e produtores estimulam o uso em pratos no estilo ocidental, substituindo a farinha de trigo, o que foi possível por causa de novos métodos de processamento do grão. Alimentos feitos com farinha de arroz podem ser consumidos por pessoas com alergia a glúten, e hoje já existem no mercado produtos como pão, macarrão tipo espaguete, bolos e biscoitos com o ingrediente. Hoje há províncias que servem pão de farinha de arroz na merenda escolar, e calcula-se que se 10% do consumo de farinha de trigo puder ser trocado por de arroz, o consumo do ingrediente pode chegar a 600 mil toneladas frente às atuais 100 mil. No filme publicitário do Ministério da Agricultura, o popular teatrólogo Terry Ito afirma que o arroz é mesmo o alimento dos japoneses e aparece comendo pães como baguete e croissant. Mas logo a seguir, ele exclama “como é gostoso pão de farinha de arroz”. Conseguirá o Japão levar o arroz de volta à mesa dos japoneses, com nova roupagem?

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